O Doutor das Causas ‘Pequenas’ na Cidade do Saber
VIÇOSA, MG – O cheiro de café fresco na sala de Lucas Mendes é uma cortesia permanente, uma espécie de bálsamo para nervos à flor da pele. O escritório, a poucas quadras do imponente pórtico da Universidade Federal de Viçosa (UFV), não tem a ostentação dos grandes centros. A madeira dos móveis é escura, gasta pelo tempo e pelo peso de centenas de pastas amarelas. Cada pasta, uma vida. Uma briga.
Lucas, um advogado que a cidade já se acostumou a ver de mangas arregaçadas, serve o café em um copo americano. Ele acaba de se despedir de uma senhora, ex-funcionária da limpeza de uma empresa terceirizada que presta serviços à universidade. Ela saiu com um aceno de cabeça e um “Deus lhe pague, doutor”, palavras que ele ouve mais do que “bom dia”.
“As pessoas olham para Viçosa e veem a universidade, o conhecimento, o progresso. E é tudo isso, sem dúvida”, ele começa, o olhar perdido por um instante na rua movimentada. “Mas por trás dos muros da academia, na roça logo ali, no balcão da loja do centro, a vida acontece. E onde a vida acontece, o direito do trabalho nem sempre é convidado para a festa.”
Seu trabalho, no fim das contas, é garantir que esse direito não seja o penetra.
Da Terceirizada da UFV ao Trabalhador da Roça
As histórias que desfilam pela cadeira em frente à sua mesa formam um mosaico da economia local. São a face B de uma cidade conhecida por exportar cérebros. Tem o vigia da empresa terceirizada que, por meses, não viu a cor do FGTS depositado. A demissão veio com um tapinha nas costas e uma promessa de “depois a gente acerta”. Não acertaram.
“O buraco, jornalista, é sempre mais embaixo”, pontua Lucas, com a paciência de quem já repetiu aquilo mil vezes. “A terceirização, por exemplo. Ela cria uma distância. O trabalhador limpa o chão de uma instituição federal de renome, sente o orgulho daquilo, mas o patrão dele é uma empresa pequena, com sede em outra cidade, que some do mapa e deixa todo mundo na mão. A quem ele recorre?”
Ele mesmo responde. Recorre a ele. E aí começa a peregrinação para provar o óbvio, para incluir a universidade no processo, para garantir que alguém pague a conta.
Mas a Viçosa de Lucas Mendes não é só a que orbita a UFV. É também a Viçosa da Zona da Mata. É o trabalhador rural contratado “de boca” para a colheita do café, que se acidenta com uma ferramenta e descobre que não tem direito a nada, porque, no papel, ele nunca existiu. É a vendedora de loja que faz “só mais uma horinha” todos os dias e vê o banco de horas virar uma lenda urbana.
“Olha, é… é complicado. A gente tem medo de reclamar, sabe? Medo de ficar ‘marcado’ na praça”, confessa Carlos, ex-garçom de um restaurante local, que busca o pagamento de comissões que eram pagas “por fora”. “Mas chega uma hora que a conta não fecha. A humilhação cansa. O Dr. Lucas foi o único que me disse: ‘Vamos atrás. É seu direito’.”
A Justiça do Café Frio e da Paciência de Jó
Quem busca um advogado trabalhista como Lucas não quer enriquecer. Quer o que é seu. E aprende, a duras penas, que a justiça tem seu próprio tempo, um tempo que não acompanha o ritmo do aluguel que vence ou da prateleira vazia do supermercado. A primeira audiência, a de conciliação, é um teste de nervos. De um lado, o trabalhador, muitas vezes sozinho ou com seu advogado. Do outro, o dono da empresa, ladeado por um jurídico que parece falar outra língua.
“Meu papel ali é, primeiro, ser um tradutor. Traduzir o ‘juridiquês’ para o português claro e direto. E segundo, ser um escudo”, explica Lucas. “É mostrar que, naquele momento, as forças são iguais. A lei existe para isso.”
Muitas vezes, um acordo põe fim à angústia. Um acordo que, quase sempre, é menor do que o direito pleno, mas que representa a certeza do dinheiro na mão contra a incerteza de anos de processo. É a matemática fria da necessidade.
Outras vezes, não. A briga se arrasta, as testemunhas são ouvidas, os recursos se empilham. E o café, que começou quente na primeira reunião, esfria em cima da pilha de papéis que só aumenta. É uma guerra de desgaste.
Ao fim do dia, enquanto as luzes da UFV se acendem, iluminando o campus que é o orgulho da cidade, Lucas desliga o computador. Na sua sala, as luzes se apagam, mas as histórias ficam, ecoando a realidade de uma Viçosa que luta, todos os dias, para que o saber e o direito andem, finalmente, de mãos dadas. A batalha é diária. E silenciosa.