Deixado na mão? A batalha de Davi contra Golias quando o plano de saúde nega cobertura.
A cena se repete com uma frequência assustadora nos lares brasileiros. Você paga, mês após mês, uma pequena fortuna, acreditando que está comprando tranquilidade. Um seguro contra o imponderável. E então, quando o chão some sob os pés – um diagnóstico inesperado, um acidente, a necessidade de um tratamento urgente – a resposta do outro lado da linha é um “não” protocolar. Frio. E, muitas vezes, ilegal.
Lidar com a negativa de um plano de saúde é, para muitos, o início de um segundo calvário. Além da doença, da dor e do medo, instala-se a burocracia, a impotência e a raiva. É a clássica luta de Davi contra Golias. De um lado, um cidadão fragilizado. Do outro, uma corporação com um exército de advogados e um manual de desculpas prontas. Mas aqui vai um segredo que eles não gostam de admitir: essa batalha pode ser vencida.
O “Não” que você não precisa aceitar
Vamos direto ao ponto. As operadoras de saúde não são instituições de caridade. São empresas e, como tal, visam o lucro. Cada procedimento negado, cada material recusado, cada dia de internação “economizado” vai para a coluna dos lucros no balanço final. O problema é quando essa busca por eficiência financeira atropela a lei e o direito fundamental à saúde.
Há mais de 15 anos cobrindo o setor de saúde para grandes jornais, perdi a conta de quantas histórias ouvi. Histórias de quem precisava de uma cirurgia urgente e ouviu que o material solicitado pelo médico “não estava no rol da ANS”. Ou de quem teve um tratamento quimioterápico de última geração negado sob a justificativa de ser “experimental”. A verdade? O buraco é mais embaixo.
Muitas dessas negativas são, na prática, abusivas. A Justiça brasileira tem um entendimento consolidado sobre vários desses pontos. Se há indicação médica, o plano não pode simplesmente se recusar a cobrir. Simples assim. O médico que acompanha o paciente, e não o auditor do plano de saúde, é quem tem a palavra final sobre o tratamento.
As Desculpas Mais Comuns (e Por Que Elas Nem Sempre Colam)
As justificativas para as negativas costumam seguir um roteiro. Conhecê-las é o primeiro passo para saber como contestá-las. É preciso estar preparado para o que vem do outro lado da linha.
Desculpa do Plano de Saúde | A Realidade (O que a Justiça Costuma Dizer) |
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“O procedimento não está no rol da ANS.” | O rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é uma lista de cobertura mínima obrigatória. Não é uma lista taxativa. Se o tratamento é essencial para a saúde do paciente e tem respaldo médico e científico, a cobertura é devida. |
“O material (prótese, órtese, stent) solicitado pelo médico não é coberto.” | Se a cirurgia tem cobertura, os materiais indispensáveis para o sucesso do procedimento também devem ser cobertos. O plano não pode escolher a marca ou tipo de material, essa é uma decisão técnica do médico. |
“Tratamento de caráter experimental.” | Muitas vezes, o que o plano chama de “experimental” é, na verdade, um tratamento moderno e inovador. Se o medicamento tem registro na ANVISA e indicação médica, a recusa pode ser considerada abusiva. |
“Doença preexistente não declarada.” | A operadora precisa provar, de forma inequívoca, que o consumidor sabia da doença ao contratar o plano e agiu de má-fé. A simples suspeita não é suficiente para justificar a negativa. |
O Caminho das Pedras: O que fazer quando a porta se fecha?
Recebeu a negativa? Respire fundo. O desespero é o que eles esperam. Mas você tem opções. O primeiro passo, e o mais crucial, é exigir que a recusa seja formalizada por escrito. Nada de “disse-me-disse” por telefone. Peça o documento com a justificativa clara e detalhada.
Com esse documento em mãos, junto com o relatório médico que detalha a necessidade do tratamento, o cenário muda. Você deixa de ser apenas uma voz no telefone e passa a ter provas.
A partir daí, os caminhos se abrem:
- Agência Nacional de Saúde (ANS): É possível abrir uma reclamação formal na ANS. Muitas vezes, a mediação da agência resolve o problema de forma mais rápida, pois a operadora pode ser multada.
- Plataformas de Consumidor: Sites como o Consumidor.gov.br também são uma ferramenta válida para pressionar a empresa a reavaliar a decisão.
- Ação Judicial: Quando a urgência fala mais alto, o caminho é a Justiça. Um advogado especializado em direito da saúde pode ingressar com uma ação com pedido de liminar.
A liminar, aliás, é a grande virada de jogo. Trata-se de uma decisão provisória e rápida que o juiz pode conceder em casos de urgência, obrigando o plano a autorizar o procedimento imediatamente, enquanto o processo continua a tramitar. Nas filas dos fóruns, a gente vê: para quem luta contra o tempo, uma liminar não é só um pedaço de papel. É a diferença entre a vida e a morte.
Não é favor, é direito
No fim das contas, a mensagem precisa ser clara. O serviço prestado pelo plano de saúde não é um favor, é uma relação de consumo regida por um contrato e pelo Código de Defesa do Consumidor. Você é a parte vulnerável dessa relação, e a lei sabe disso.
É cansativo, é estressante e, sejamos honestos, é revoltante ter que brigar por algo pelo qual você já pagou. Mas abaixar a cabeça não é uma opção. Informar-se, buscar ajuda especializada e lutar pelo seu direito não apenas resolve o seu problema, mas ajuda a construir um sistema mais justo para todos. Afinal, Golias só parece invencível até a primeira pedra ser atirada.
Este artigo foi elaborado com base em mais de uma década de apuração jornalística na área da saúde e do direito do consumidor. A experiência acompanhando casos reais, entrevistando pacientes, médicos e advogados, além da análise de centenas de decisões judiciais, molda a perspectiva cética, mas informativa, apresentada aqui. Não se trata de uma análise teórica, mas do reflexo do que acontece, de fato, no dia a dia do cidadão brasileiro.
Perguntas Frequentes (FAQ)
Preciso mesmo de um advogado para processar o plano de saúde?
Embora seja possível ingressar com uma ação nos Juizados Especiais Cíveis (as “pequenas causas”) sem advogado para causas de menor valor, em casos de saúde, que são complexos e urgentes, a presença de um advogado especializado é fundamental. Ele saberá como formular o pedido de liminar, argumentar com base na jurisprudência e aumentar drasticamente as chances de sucesso.
Quanto tempo demora um processo com pedido de liminar?
A análise de um pedido de liminar costuma ser muito rápida, justamente por se tratar de uma medida de urgência. Dependendo do juiz e da comarca, uma decisão pode sair em questão de horas ou poucos dias (geralmente entre 24h e 72h).
O plano pode me perseguir ou cancelar meu contrato se eu entrar na Justiça?
Não. A prática de retaliação contra o consumidor que busca seus direitos é ilegal e abusiva. O plano não pode cancelar seu contrato ou te tratar de forma diferente por você ter ingressado com uma ação judicial. Se isso acontecer, a empresa pode ser condenada a pagar indenização por danos morais.
O que é o “rol taxativo mitigado”, que tanto falam nos jornais?
Foi uma decisão importante do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Na prática, significa que o rol da ANS, embora seja a regra, não é absoluto. Ele pode ser superado e o plano pode ser obrigado a cobrir um procedimento fora da lista se não houver outra opção eficaz na lista, se houver comprovação científica de eficácia e se houver recomendação médica. É uma válvula de escape legal para garantir tratamentos essenciais.
Fonte de referência para dados sobre o setor e decisões judiciais: G1 – Seu Dinheiro.